Muito se fala sobre o aspecto social dos jogos, em como os jogos eletrônicos aproximam as pessoas, como estimulam as experiências em grupo, e tudo o mais. Que há modalidades de jogos que estimulam o aspecto gregário dos humanos, entre outras coisas.
Muito já foi escrito sobre isso, e isso é, em geral, verdade. Agora, há diferentes aspectos de agregação social, e é interessante ver como eles diferem.
Os jogos eletrônicos tiveram como berço a experiência em grupo. Durante algum tempo, era impossível jogar eles sozinho: sempre era preciso de um segundo jogador. O clássico Pong é o exemplo mais claro dessa filosofia inicial. Claro que isso se devia mais às limitações técnicas e à necessidade de espelhamento (para reduzir o tamanho dos jogos) do que por visão de jogabilidade. Foram anos de gente se acotovelando ao redor de pequenas telas monocromáticas em disputas ferozes entre poucos pixels.
Com o aumento da capacidade de processamento e, principalmente, a chegada dos consoles domésticos, nasciam os jogos single-player. No Atari/Odyssey eles eram praticamente inexistentes, mas com o advento dos 8-bits, começamos a ter as experiências voltadas para um único jogador, meio contemplativas, como nos Zeldas e Final Fantasies. Estes foram os verdadeiros avós do single-player, já que esta é uma experiência totalmente voltada para essa modalidade.
Eu nasci junto com o Atari 2600. Tinha 4 anos quando meu pai trouxe um console americano contrabandeado para a família. Eu sofria um pouco, pois não havia muitos jogos single -player, e havia uma certa relutância de minha família (principalmente dos irmãos) em jogar com o molequinho. Então, enquanto os jogos favoritos deles eram os mais sociais, como Combat, eu adorava jogos como River Raid, Hero, Pitfall e Missile Command. Eles permitiam que eu me divertisse por conta própria, sem precisar da ajuda de ninguém, e foram com esses jogos que eu descobri uma paixão pelos jogos eletrônicos. Lembro-me até mesmo de viajar, pensando em como seria legar ter um fio que ligasse meu Atari ao de outras pessoas (até no exterior, quem sabe!) e permitisse que jogássemos juntos, mas separados. Demorou um pouco até meu sonho ser realizado.
O tempo passou, os consoles ficaram mais poderosos, as experiências de jogo mais diversas, mas ainda havia um lugar onde o que importava mesmo era a experiência de grupo. Onde o que valia era mostrar que era bom em público, onde qualquer um poderia lhe desafiar, e ai de você se pedisse para o cara não entrar! Uma das maiores marcas de vergonha era bloquear o slot de fichas com a concha, choramingando que aquela era sua última ficha!
Sim, era o glorioso fliperama. Um lugar maldito, de má reputação (em grande parte merecida), uma verdadeira arena de PVP, só que ao vivo e em cores. A regra era simples, quanto mais fichas comprava, mais barato era jogar. Bater em gente atordoada em jogo de luta era pecado mortal, salvo acordo anterior. Mexeu no controle de quem está jogando, morreu. Banho era opcional, mas bastante desejável, apesar de ser uma verdadeira estratégia de combate de certos garotos de rua ou babacas.
Fliperama que se prezasse não tinha comida ou bebida, bancos para se sentar (a não ser aqueles bancos de madeira altos, em alguns lugares, disputados a tapa), conveniência, banheiros decentes, iluminação saudável, circulação de ar, etc. Era um verdadeiro antro insalubre. E a gente adorava aquilo.
A conservação das máquinas seguia muito a infraestrutura do lugar, mas isso é uma das poucas coisas que variavam bastante: em geral, os fliperamas do centro de São Paulo eram salões retangulares enormes, no nível da rua ou no primeiro subsolo, de chão frio e iluminação branca (que invariavelmente ficava piscando, semi-hipnoticamente). Esses fliperamas eram grandes, e esse era um grande atrativo: havia uma variedade grande de máquinas, e muitas vezes, era possível encontrar títulos mais obscuros, verdadeiras pérolas que gravavam seus logotipos de forma indelével nos monitores CRT dos gabinetes. Outro atrativo desses lugares era o preço: muitas vezes, era possível gastar de 30 a 50% a menos nesses locais. Mais até, se você conhecesse o “tio da ficha”. E lhe garanto: os garotos de rua daquela época podiam ser analfabetos, mas eles era experts em tabuada, graças à dança das fichas e da inflação pré-plano real. Faziam cálculos com uma rapidez invejável.
Nesse tier de fliperama, talvez o maior diferencial era o controle das máquinas. O bom jogador de fliper não se importava em pagar um pouco mais ou se deslocar para um fliper mais distante para jogar sua máquina favorita com controles lubrificados e todos os botões funcionando. Pouca coisa matava fliperamas naquela época, e ter consistentemente controles zoados era uma delas. A reputação de manutenção das máquinas espalhava-se com uma rapidez surpreendente, em uma época sem celulares ou internet. Abriu um fliper em Diadema com Samurai Shodown 2 com tela grande e controles legais? Em menos de um dia todo mundo sabia disso. Boa parte iria até lá, conferir o boato.
Havia um segundo tipo de fliperama, mais comum em bairros de poder aquisitivo um pouco maior. Ele era menor (pois ficavam em lugares onde o aluguel era mais caro e cada metro quadrado fazia a diferença), tinha menos máquinas e era voltado a uma seleção menor de jogos, em geral um ou no máximo dois gêneros. Nestes fliperamas era possível, de vez em quando, encontrar cascos originais de certos jogos, como Simpsons, X-Men, Teenage Mutant Ninja Turtles, fora do ambiente de Shopping Center.
Os fliperamas de Shopping eram um animal à parte, pois além de serem caríssimos (a proporção em geral era 1 ficha de shopping para 10-15 fichas de fliper de rua), possuíam uma seleção MUITO limitada, e o preço muitas vezes não condizia com a manutenção (estou olhando para você, Playland do Shopping Paulista). A sua única qualidade que os redimiam eram cascos originais de vários jogos, e eventualmente uma máquina importada quase que simultaneamente com o exterior. Quando a primeira máquina original de Killer Instinct chegou ao Brasil, na Paulista, com o casco original e caixas de som bombando aquela maravilhosa trilha hard pop, todo mundo percebeu. A máquina havia chegado em uma Terça Feira. Houve um sensível aumento no número de faltas de todos os colégios da região pelo resto da semana. Eu conhecia os donos de banca da Paulista na época, e peguei uma edição da GamePRO com uma matéria de apresentação do jogo e…. códigos de Ultra Combo e Ultimate para alguns personagens (dentre eles o Sabrewulf, meu favorito). Caros leitores, comprei aquela ficha (caríssima) com a confiança de um tenente que adentra um quartel de recrutas. Ninguém sabia quase que golpe nenhum, era tudo na intuição. Esperei a vez de um desafeto antigo meu, perguntei polidamente, com um meio sorriso: “Posso?”, entrei contra e dei uma surra tão acachapante na criatura que ele perdeu o rumo. No final, a humilhação suprema: combo longo, Ultra Combo e air juggle. Sem brincadeira, parecia cobrança de pênalti em final de Copa do Mundo. Todo mundo berrando, soltando expletivos humildes como o já clássico: “Yééééeéééé!”, além de palavrões sortidos. O cara anda teve a manha de entrar contra de novo para tentar lavar a honra, manchada de forma indelével, só para tomar um round Perfect, um Combo Breaker, e o Ultimate em que o Sabrewulf cresce as garras e enfia no bucho do inimigo, no melhor estilo Mortal Kombat. Lembrar disso coloca um grande sorriso em meu rosto. Foi um bom dia!
Mas, tirando essas situações extraordinárias, o fliperama de Shopping era uma aberração, e não conta para o que estou descrevendo aqui. Era uma excentricidade, em meio à rotina e constância de nossos amados fliperamas de rua.
Os fliperamas da Liberdade eram o paraíso dos jogos de Luta, pois era raro encontrar as franquias laterais de luta da SNK (como Last Blade, Waku Waku, e até mesmo World Heroes e Real Bout) fora de lá. De forma coadjuvante, havia grandes shmups, também da SNK, como Prehistoric Island, Aero Combat, etc. Já o centro era o local de se jogar jogos da Capcom e Konami, além de platformers, como Darkstalkers (impossível de achar na Liberdade), Rygar, Ghost and Goblins, e vários Beat’em Ups, como Vendetta, Cadillacs and Dinosaurs. Em lugares com muito tráfego de office boys (como na 7 de Abril e alguns lugares estratégicos no entorno da Avenida Paulista), era comum encontrar máquinas de corrida, muito populares entre eles, como Daytona, Sega Rally, a série Cruisin’, Indy 500.
Eu tinha um mapa mental bastante complexo de todos os fliperamas que conhecia (que não eram poucos), e aí eu planejava o meu dia de jogatina de acordo com a minha vontade do dia. Em geral, eu ia à Liberdade só nos fins de semana, para economizar condução. Em compensação, eu ficava lá o dia inteirinho, e era muito comum ser expulso pelos donos do fliper que estavam fechando, só para descobrir que já era 1 da manhã e não havia mais ônibus para casa.
É difícil descrever a importância dos flipers na minha formação. Eu ia neles desde MUITO jovem, tipo 6, 7 anos. Quando meu pai morreu, eu tinha 9 anos, e esses ambientes foram importantes para a minha educação social, financeira, diplomática e psíquica. Eu aprendi muito sobre a natureza humana, sobre como saber ganhar e perder, sobre como gerenciar meu tempo e dinheiro, sobre como me impor perante pessoas hostis, sobre como agradar e ser popular. Tudo isso em lições que custavam 10 centavos a ficha.
Havia, claro, o lado negro. Sempre há. Havia a presença de drogas, bebida, gente abusiva, violência, corrupção, e comportamentos obsessivos e limítrofes. Precisei brigar algumas vezes (não me orgulho disso), precisei sair correndo tantas outras. Tive que jogar moleque de rua drogado, completamente chapado e com caco de vidro na mão, para longe, de forma a não machucar a ele e a mim mesmo. Já enfiei valentões folgados na caçamba de lixo, head first (ok, disso eu me orgulho). Já bati e já apanhei. Mas eu sempre tive um approach bastante sensível em relação às maiores roubadas, e hoje, em retrospecto, me surpreendo com quão maduro e sensato eu fui durante aqueles anos.
De quebra, você conhecia figuras espetaculares, que poderiam figurar em qualquer livro do Nélson Rodrigues ou Plínio Marcos. Era um desfile de apelidos folclóricos, de gente que hoje eu sinto saudades: Negão, Fung Ku (o terrível japa fanho), Orêia (em pelo menos duas incarnações diferentes), Croquete, Nevasca, Manja Rola (terrivelmente vesgo, mas jogava platformers como poucos), Alemão, Cruzcredo, Chun-Li, etc, etc. O que eu não daria para juntar essa galera em uma mesa de bar, para relembrar histórias que a maioria das pessoas achariam que era mentira.
Cada uma dessas figuras tinha suas particularidades e áreas de especialização. Nesse quesito, eu era meio raro, pois jogava bem shmups e platformers, e não fazia feio nos jogos de luta (em especial aqueles que tinham personagens lentos e fortes). Essas pessoas tinham seus jogos favoritos, e você só era aceito ‘de verdade’ na subcultura fliperamística se você acabasse algum jogo ‘de respeito’ com uma só ficha. No meu caso, meu troféu era acabar os 3 primeiros Gradius (Salamander) consistentemente com uma só ficha. Além disso, sou a única pessoa que vi acabar Prehistoric Island com um crédito só. Era um prazer assistir os mestres jogando seus respectivos jogos, mostrando suas táticas e manhas (como as caronas nas costas dos gárgulas voadores nas fases de cachoeira do Rygar), e também jogar com platéia. Ver as pessoas comentando ali, do seu lado, e acabar um jogo desafiador com seus pares ao redor é uma marca de orgulho muito grande.
Tudo isso é uma ilustração de como os jogos são fatores de agregação social, ajudando a organizar uma população e suas relações, de forma saudável (em sua maior parte), mesmo sem o elemento digital, online, instantâneo que temos nos jogos de hoje.
Jogadores de MMO em geral, eu espero honestamente que vocês tenham experiências sociais ricas envolvendo seus jogos e seus círculos de amigos jogadores, da mesma forma que eu tive, no passado. Caso contrário, vocês perderam uma fatia bastante saborosa do ‘ser jogador’.